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sábado, 9 de abril de 2022

DESAFIO - "Um Poema por dia nem sabe o bem que lhe fazia!"

 DIA 20

Dia 20: Poesia e filosofia de mãos dadas nos mergulham na alma, através do grande Agostinho da Silva, e tudo revolucionam, assim o permitamos… e quanta libertação daí pode surgir, libertação do “mesmismo”, da rotina, do “inadiável” que sufoca e oprime….

 

Queria que os Portugueses

Queria que os portugueses

tivessem senso de humor

e não vissem como génio

todo aquele que é doutor

 

sobretudo se é o próprio

que se afirma como tal

só porque sabendo ler

o que lê entende mal

 

todos os que são formados

deviam ter que fazer

exame de analfabeto

para provar que sem ler

 

teriam sido capazes

de constituir cultura

por tudo que a vida ensina

e mais do que livro dura

 

e tem certeza de sol

mesmo que a noite se instale

visto que ser-se o que se é

muito mais que saber vale

 

até para aproveitar-se

das dúvidas da razão

que a si própria se devia

olhar pura opinião

 

que hoje é uma manhã outra

e talvez depois terceira

sendo que o mundo sucede

sempre de nova maneira

 

alfabetizar cuidado

não me ponham tudo em culto

dos que não citar francês

consideram puro insulto

 

se a nação analfabeta

derrubou filosofia

e no jeito aristotélico

o que certo parecia

 

deixem-na ser o que seja

em todo o tempo futuro

talvez encontre sozinha

o mais além que procuro.

 

 Agostinho da Silva, in 'Poemas'

 

Vida

Três votos fará aquele

que não ser tolo decida

e venha deles primeiro

o de obediência à vida

 

será o segundo a vir

o de não querer ser rico

o muito passe de largo

o pouco lhe apure o bico

 

não violar-se a si próprio

como principal o veja

alto ou baixo gordo ou magro

assim nasceu assim seja.

 

Agostinho da Silva, in 'Poemas'

 

Sonho

Teria passado a vida

atormentado e sozinho

se os sonhos me não viessem

mostrar qual é o caminho

 

umas vezes são de noite

outras em pleno de sol

com relâmpagos saltados

ou vagar de caracol

 

quem os manda não sei eu

se o nada que é tudo à vida

ou se eu os finjo a mim mesmo

para ser sem que decida.

 

Agostinho da Silva, in 'Poemas'

 

Escolher a Felicidade

Nem paz nem felicidade se recebem dos outros nem aos outros se dão. Está-se aqui tão sozinho como no nascer e no morrer; como de um modo geral no viver, em que a única companhia possível é a daquele Deus a um tempo imanente e transcendente e a dos que neles estão, a de seus santos. Felicidade ou paz nós as construímos ou destruímos: aqui o nosso livre-arbítrio supera a fatalidade do mundo físico e do mundo do proceder e toda a experiência que vamos fazendo, negativa mesmo para todos, a podemos transformar em positiva. Para o fazermos, se exige pouco, mas um pouco que é na realidade extremamente difícil e que não atingiremos nunca por nossas próprias forças: exige-se de nós, primacialmente, a humildade; a gratidão pelo que vem, como a de um ginasta pelo seu aparelho de exercício; a firmeza e a serenidade do capitão de navio em sua ponte, sabendo que o ata ao leme não a vontade de um rei, como nos Descobrimentos, mas a vontade de um rei de reis, revelada num servidor de servidores; finalmente, o entregar-se como uma criança a quem sabe o caminho. De qualquer forma, no fundo de tudo, o que há é um ato de decisão individual, um ato de escolha; posso ser, se tal me agradar, infeliz e inquieto.

 

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

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